LA DANSEUSE | la loïe, the french call her.


[La Danseuse,  Stéphanie Di Giusto, França, 2016]

Se pensarmos nos primórdios da dança moderna, vêm-nos possivelmente à memória os nomes Isadora Duncan ou Martha Graham, no entanto, o nome de Loïe Fuller, de quem Duncan foi discípula, é relativamente desconhecido. La Danseuse tenta corrigir esse lapso mnésico na história da dança dando a conhecer a vida de Marie Louise Fuller, a primeira intérprete a subverter a linguagem coreográfica do bailado clássico, mas também os dispositivos de iluminação tradicionais, instituindo uma engenhosa lógica dramatúrgica que funde figurino e espaço cénico com recurso a técnicas multimédia.

Nascida em 1862 no interior dos E.U.A. no seio de uma família humilde, Marie Louise sonhava com o teatro (era grande fã de Sarah Bernhardt) e não tinha, nem veio a ter, qualquer formação como bailarina. Mas quis o destino (por mero acaso, conta-se) que desenvolvesse um espectáculo a solo que consistia num estilo de dança novo e único: a Serpentine Dance. Para tal, elabora um figurino composto de varas e tecido (que ela própria costura), que serpenteia em palco com movimentos giratórios em espiral. Apercebeu-se de imediato das potencialidades que a invenção da lâmpada eléctrica poderia conferir ao movimento e ilumina o figurino com luzes multicoloridas ou imagens projectadas. Considerada uma mera artista circense nos circuitos do vaudeville americano, decide viajar para Paris, na esperança de ver reconhecido o seu trabalho e patenteadas as suas técnicas de iluminação. Estreia-se no Folies Bergère em 1882 com o nome de Loïe Fuller e aperfeiçoa a sua actuação. Com o palco mergulhado na escuridão total, enverga um vestido composto por muitos metros de seda branca, estruturado por uma armação que funciona como extensão do seu corpo e como tela de projecção, criando um jogo de sombras, cores e silhuetas. Em pouco tempo, o seu nome atrai a curiosidade de muitas aspirantes a bailarinas, o que a leva a criar a sua própria escola de dança (Les Féeries Fantastiques de Loïe Fuller), onde a dada altura acolhe a jovem prodígio Isadora Duncan. Acrescenta à sua performance a colaboração das alunas, a aplicação de sais luminescentes projectados e a utilização de espelhos que distribuem a sua imagem pelo palco. A “Deusa da Luz” converte-se numa sensação parisiense e num símbolo da Belle Époque. Inspira artistas, poetas e intelectuais (Toulouse-Lautrec pintou-a, Rodin esculpiu-a, Yeats homenageou-a no poema Nineteen hundred and Nineteen) e influencia decisivamente a Art Nouveau, A “Deusa da Luz” converte-se numa sensação parisiense e num símbolo da Belle Époque.o Simbolismo e os princípios do próprio cinema (em 1886, os irmãos Lumiére apresentam a Serpentine Dance naquele que pode ser considerado um dos primeiros filmes a cores da história do cinema, embora a cor seja pintada à mão em cada quadro). O sucesso de Fuller na Europa é revolucionário na história da dança (numa altura em que apenas o bailado clássico imperava enquanto única forma de dança passível de ser considerada uma arte) e abre caminho para novas expressões na dança e novos intérpretes – nos quais Isadora Duncan se inclui. Ao longo do tempo, o seu corpo começa a ceder ao peso bruto do traje pesadíssimo que envergava e os seus olhos a falhar, queimados pelos feixes de luz. Morre em Paris, em 1928.

A primeira longa-metragem de Stéphanie Di Giusto (com argumento baseado no livro Loïe Fuller, danseuse de la Belle Epoque, do historiador italiano Giovanni Lista), enquanto biopic, deixa algo a desejar no sentido em que, pretendendo fazê-lo, não reflecte o mundo interior da protagonista, preferindo debruçar-se cronologicamente numa sucessão de factos apoiada em elementos romanceados. Talvez tome também demasiadas liberdades biográficas (colocando excessiva ênfase num triângulo amoroso fantasiado) e não traduza adequadamente o espírito da época. Mas oferece uma oportunidade dourada a duas jovens actrizes: a protagonista – interpretada pela sui generis actriz e cantora francesa SoKo – é apresentada como uma artista verdadeira que rejeita a submissão aos princípios técnicos do bailado clássico e suplica a naturalidade da dança, tendo pago com a degradação do corpo o preço da sua obstinação: a Serpentine é mostrada como resultado de muito esforço e uma abnegação enorme. Num papel emblemático e fisicamente muito exigente, SoKo é formidável na composição da personagem de Fuller: incrivelmente determinada, embora humilde e insegura. O elenco é completado por Gaspard Ulliel (Louis Dorsay, um conde rico e deprimido que a corteja e financia os seus espectáculos) e pela muito jovem Lily-Rose Depp na figura de uma Isadora Duncan genial mas ambiciosa e manipuladora, que fascina e esgota a sua mentora. Um dos aspectos interessantes do filme é a discussão da dicotomia talento/trabalho expressa no antagonismo entre Duncan e Fuller: a primeira aérea, graciosa e naturalmente dotada de um talento enorme, a segunda terrena, obstinada e obcecada com dispositivos técnicos que compensariam a ausência de preparação artística. O ponto alto de La Danseuse será a fotografia de Benoît Debie nos momentos de palco da personagem central: são imagens quase celestiais, fabricadas de tecido esvoaçante e estupendos efeitos de luz. Diga-se por fim que, independentemente das suas limitações, La Danseuse tem ainda o mérito de devolver a figura de Loïe Fuller ao seu lugar fundamental, não apenas enquanto pioneira do desenho de luz e do que conhecemos por dança moderna, mas também como responsável pela sua aceitação enquanto forma de arte.

[originalmente publicado em Les Corps Dansants]

Publicado por

Edite Queiroz

Nasceu em Coimbra. Psicóloga. Cinéfila. Vive em Lisboa.

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