BABY REINDEER. why did it take you so long to report it?

[Baby Reindeer, Richard Gadd, 2024]

A mini-série da Netflix, inspirada na peça homónima de Richard Gadd, segue a vida de Donny Dunn (versão ficcionada de Gadd e interpretada pelo próprio), um aspirante a humorista que ganha a vida como empregado de balcão num pub em Camden. É aí que conhece Martha (a incrível Jessica Gunning), uma mulher mais velha, sem dinheiro, a quem oferece um chá, um gesto de bondade e empatia que espoleta uma fixação inusitada. Martha passa a frequentar o pub diariamente. Senta-se sempre no mesmo banco, elogia Donny (a simpatia, as piadas, a estrutura óssea), debita histórias intermináveis (e falsas) sobre os seus sucessos profissionais, propriedades e amigos famosos. Trata-o por uma alcunha carinhosa: baby reindeer. Mas, às aparições diárias no pub, depressa se somam atitudes cada vez mais estranhas: convites, centenas de emails diários e cheios de erros, perseguições, acusações e cobranças.

Até aqui, pouco sobressai: o stalking é um tema bastante popular (sobretudo, desde a normalização do culto de celebridades e da proliferação das redes sociais). Mas os enredos pouco diferem. Geralmente, envolvem uma dicotomia vítima/perpetrador algo estereotipada (centrada na personalidade sombria/sedutora do perpetrador e nas consequências, físicas e psicológicas, para a vítima), uma obsessão (quase sempre de natureza sexual) e comportamentos aterradores e violentos, um desfecho trágico. Clássico é, também, o viés de género (perpetradores homens e vítimas mulheres) – que, apesar de corroborado pela estatística, carece de investigação. Homens e mulheres avaliam de forma diferente a qualidade, intensidade e frequência de uma campanha comportamental, bem como o seu grau de vulnerabilidade e o perigo, para não falar na predisposição para admitir medo ou ameaça. E por isso, é possível que o stalking com perpetradoras mulheres seja sub-reportado, embora a cultura pop lhe dedique alguma atenção – Fatal Attraction (Adrian Lyne, 1988) é um exemplo paradigmático.

Mas, em boa verdade, pouco se sabe sobre o stalking, apesar de existirem vários modelos explicativos. Desde logo, porque o conceito é difícil de definir. Tem fronteiras difusas com outros fenómenos (o assédio moral e sexual, a violência psicológica) e depende, em grande medida, da percepção da pessoa visada. Uma definição genérica indica um padrão de comportamentos intrusivos, que se traduzem em diversas formas de contacto, vigilância e monitorização e produzem, no alvo, desconforto, angústia ou medo. Mas esta simplificação está longe de abarcar o que, a todos os níveis, o stalking pode implicar.

Baby Reindeer é excepcional, não por se basear numa história verídica, mas porque nada de novo traria à abordagem do costume, se não o fosse. Mudando nomes, traços personalísticos e outros detalhes, Richard Gadd recria a sua história de stalking (por uma mulher que o endeusa, apesar dos seus fracassos) e, alguns anos antes, de abuso sexual (por um argumentista disposto a ajudá-lo na sua carreira, apesar das suas limitações) e, à boleia do relato, discorre, intencionalmente ou não, sobre a psicologia da vítima. A representação da sobrevivência ao trauma em Donny/Gadd é de um realismo brutal no que toca aos terrenos propícios ao abuso, mostrando como um (primeiro) trauma pode moldar a percepção da realidade e do próprio, levando a processos de questionamento identitário, comportamentos de risco e dificuldades em estabelecer confiança, funcionar social ou sexualmente ou sentir prazer e satisfação com a vida. A necessidade de recuperar o controlo e (re)encontrar um sentido impelem-no depois à procura de situações limite que, normalizando a proximidade com o risco, lhe tornam difícil a distinção entre perigosidade e segurança. Ao mesmo tempo, os sentimentos negativos gerados pelo trauma (vergonha, culpa, a auto-estima destruída) alimentam um sentimento interno de punição, merecida e por isso procurada, que distorce a noção de intimidade e a natureza dos afectos, boicotando a relação, potencialmente saudável e segura, com a mulher por quem finalmente se apaixona (Nava Mau). Tudo isto o torna vulnerável a riscos maiores (desejo de aprovação a todo o custo, relativização de comportamentos inaceitáveis nele próprio e nos outros, manipulação), colocando Martha no seu caminho: aos olhos dela, ele é perfeito. O vínculo torna-se inescapável, transforma-se num vício, sem o qual a sensação de vazio se intensifica. A relação é, agora, de co-dependência.

Compreendendo que Donny/ Gadd não é uma vítima acidental e que Martha é, também ela, uma vítima, Baby Reindeer tem ainda contributos a oferecer para a psicologia do stalker, facilitando um olhar mais empático para com este e as suas acções. A perseguidora é retratada como alguém tão ou mais vulnerável que o protagonista, destacando o papel da solidão e do estigma (e do abandono a que a sociedade vota os que sofrem destes problemas) na génese da transgressão e do delito, para lá do rótulo de loucura ou desumanidade comumente apresentado. Aqui, a suposta vilã é só uma pessoa, como tantas, cheia de problemas, provavelmente, uma doença mental. O verdadeiro vilão, bom, passa quase despercebido.

Gadd refere, algures, que o seu trabalho com a associação We Are Survivors lhe deu a consciência da importância de “quebrar o silêncio”. Fê-lo através da comédia, mecanismo com benefícios documentados na gestão do sofrimento e na resignificação de memórias traumáticas. Mas, apesar do tom tragico-cómico, da alteração de factos ou dos meses/anos de terapia a que se terá submetido, escrever e protagonizar esta série, falar sobre ela, é reviver um trauma. Isso é valente. Que, além dos mecanismos, perplexidade e contradições que esclarece, Baby Reindeer possa estimular alguma compaixão adicional (connosco e os outros), talvez ajudando a perceber quando precisamos de ajuda e a ter coragem de a pedir. Lamentável, que a Internet esteja mais interessada em desvendar as identidades dos intervenientes do que em entender as matizes que aqui convivem.

 

LIGAÇÕES ÚTEIS:

APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima

Quebrar o Silêncio

DGAJ – Como denunciar um crime

Ordem dos Psicólogos Portugueses – Vamos Falar de Abuso Sexual

 

Publicado por

Edite Queiroz

Nasceu em Coimbra. Psicóloga. Cinéfila. Vive em Lisboa.

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