faz sentido termos psicólogos “em todo o lado”?

Levei uns minutos a decidir se este artigo publicado no jornal “O Público” (me) merece resposta. Mas como sou toda a favor da evidência e pouco adepta do bate-boca, permitam-me apenas aqui deixar uns factos a propósito de fazer ou não sentido “termos psicólogos dentro das empresas? Dentro das universidades? Dentro das escolas? Dentro das câmaras municipais? Dentro da Assembleia da República? Dentro dos festivais de música? Dentro dos ministérios? Em todo o lado?”

Ora Portugal é o 2.º país com a taxa de prevalência de problemas de saúde mental mais elevada da Europa. Os últimos dados epidemiológicos têm mais de uma década (não há estudos recentes), e já nessa altura apontávamos para 1 em 5 portugueses com problemas de saúde mental. Estes representam quase 12% da carga global das doenças, mais do que as doenças oncológicas. Os custos do stress e problemas de saúde mental em contexto laboral duplicaram nos últimos 2 anos, devido a absentismo, presentismo e baixas. Mas os mais jovens são a camada mais afectada. Quase metade dos adolescentes portugueses e quase 20% dos estudantes do ensino superior tem sintomas depressivos. Esta semana, uma notícia do Expresso dá conta de que nunca, como agora, se receitaram tantos antidepressivos em Portugal: são vendidas 33 mil embalagens por dia. Estes números são acompanhados por insuficiências gritantes de respostas no SNS (sabem que há pouco mais de 1000 psicólogos em todo o país?), nas escolas e universidades (onde, em 15% dos casos, não há sequer um serviço de psicologia). É mais do que reconhecido que vivemos uma crise de saúde mental.

A autora pergunta quem nasceu primeiro, se os flocos de neve, se a moda da Psicologia. Ora o que nasceu primeiro foi a falta de condições de trabalho, os baixos salários, a longa duração das jornadas de trabalho, a precariedade, a inflacção e o aumento do custo de vida, a pobreza, o estigma e a discriminação (que este tipo de texto reforça, sugerindo que as pessoas com problemas de saúde mental são hiperfrágeis ou exacerbadamente sensíveis), a infodemia e a desinformação, a falta de apoio social e comunitário, o acesso a serviços adequados – inclusive, de saúde.

A saúde mental não brota da vontade nem se circunscreve aos limites da pele. Esta geração não é “demasiado emocional”, só bastante açoitada. Andamos esgotados, não temos casa para viver nem dinheiro para ir ao médico, não temos tempo para a família, para os amigos ou para os amores, não temos largura de banda para nada excepto para tentar ir resolvendo a vida. Cerca de um terço das pessoas trabalham são pobres. Muitas têm dois e três empregos (quando têm emprego) para poderem pagar rendas, prestações, alimentação, escolas e até seguros, para terem cuidados médicos e psicológicos. Isto num contexto global de terror e de guerra, de desastre climático, de polarização e de desconfiança. Mas todos os dias nos vendem a ideia de que cada um é responsável pelos seus “sucessos” e “fracassos”. Que, para sermos melhores, temos de ser sempre mais: trabalhar mais, produzir mais, estudar mais, meditar mais, agradecer mais, investir mais no auto-cuidado, fazer mais mindfulness na empresa para compensar o excesso que nos impõe e o pouco que nos devolve.

Há uns tempos, parafraseei uma frase que dizia: Se uma planta murchar, não a diagnosticamos com “síndrome da planta murcha”, mas mudamos as suas condições. Não vou dissertar aqui, já o fiz muitas vezes, sobre as ferramentas dos psicólogos e da Psicologia, apenas sublinhar que está devidamente investigado e evidenciado que temos todas as condições para “psicologizar” a realidade – aí concordo com a senhora – e porque as temos, temos também as condições para ajudar a transformá-la, estivéssemos mais presentes em todos os contextos. Sim, em todos. Nas empresas, universidades, escolas, câmaras municipais. Sim, na Assembleia da República e ministérios (seriamos tão necessários), nos festivais de música e em muitos mais que escaparam ao crivo da autora. Mas, como o comentário vai longo, destaco apenas mais um: o SNS.

Saúde mental é saúde. A saúde é um direito, não é uma lembrança que se dá nos anos. E como tal, não se resolve com vouchers.

Publicado por

Edite Queiroz

Nasceu em Coimbra. Psicóloga. Cinéfila. Vive em Lisboa.

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