[Alicia Alonso (21-12-1920 - 17–10-2019)]
Alicia-Ernestina, tão pequenina, quer ser bailarina. Com 9 anos apenas, rodopia ao som dos discos da mãe, caminha na ponta dos pés, mexe-se como Isadora Duncan, porque não sabia o que era dançar. Na capital cubana dos anos 20 do ido século, a dança foi desejo de menina, primeiros passos dados sem medo na Escuela de Sociedad Pro-Arte Musical de Havana. Não tem o corpo ideal, dizem-lhe os professores, mas tem a extensão, o golpe e força. É isto que quero fazer o resto da vida. Alicia-Bela-Adormecida pisa o palco pela primeira vez. A ternura dos 16 traz-lhe Fernando, e a dança foi amor. Voam para Nova Iorque à procura do futuro e Alicia-mãe traz Laura ao mundo. A vida é difícil na grande-maçã ruidosa e vibrante, é preciso trabalho e ousadia. Alicia-coragem estreia-se na comédia musical, mas continua o rigoroso treino clássico. Como uma esponja, de tão ansiosa, estuda com Leon Fokine, Alexandra Fedorova, Enrico Zanfretta, Anatole Vilzak, professores eminentes da School of American Ballet.
Alicia-mulher, mundo todo nos braços e pernas, vontade férrea na ponta dos pés, junta-se com Fernando ao recém-criado Ballet Theatre, que a faz solista. O treino físico é implacável. 20 anos apenas e falham-lhe os olhos com tanto para ver, as cirurgias cortam-lhe o movimento e golpeiam-lhe a vida. Alicia-dor tem a dança só nos pés, aponta e estica os dedos, desorientada, Danço na minha cabeça. Em vésperas de estreia, a estrela adoece, é preciso alguém para o grande papel. A oportunidade é agora, e a dança foi sacrifício. De olhos cerrados em ligaduras, Alicia-resistência pára tratamentos sem pensar em consequências, não há vida fora do palco. Cega, imóvel, deitada de costas, ensinei-me a dançar Giselle. Volta aos ensaios, transforma-se em sete dias, pés em sangue, coração em fogo. As cores do mundo são agora espectros confusos, mas a técnica pura permite-lhe dominar o espaço, guiada por luzes colocadas em pontos estratégicos. A sintonia com os parceiros alivia-lhe a tarefa de dançar nas sombras. Alicia-Giselle conquista o público e a crítica. Às cegas é Carmen, Aurora, Clara, Odette/ Odile, Julieta e tantas outras. É a grande ballerina dramática, intérprete maior do reportório clássico e romântico. Dança Giselle até 1948.
Diz-se em Cuba que Alicia nasceu para que Giselle nunca morra, essa Cuba amada que nesse ano a acolhe de volta. E a dança foi o sonho de fazer uma escola na terra natal, onde não existem ainda companhias profissionais. Funda, com Fernando, o Ballet Alicia Alonso e faz de Alberto, seu cunhado, o director artístico. Começa a procurar bailarinos entre os seus compatriotas. Alicia-coreógrafa dirige os primeiros trabalhos. No ano seguinte, a jovem companhia faz a primeira viagem pelos países da América Latina. Mas em 1956, a situação política em Cuba deteriora-se. A ditadura de Fulgencio Batista retira-lhe apoio económico, Alicia protesta, recusa-se a dançar na ilha. Leva consigo alguns dos bailarinos mais promissores para que não definhem neste período. Em plena Guerra Fria, Alicia-estrela recebe o convite para actuar nos principais palcos da União Soviética, o primeiro dirigido a uma bailarina do hemisfério ocidental. Dança em Moscovo, Leningrado e Kiev, nas famosas companhias Bolshoi e Kirov. Aos 40 anos, ainda gira os 32 fouettés do Cisne Negro. É mundialmente reconhecida como prima ballerina assoluta, a única latino-americana na história.
Em 1959, a dança foi revolução. Fidel promete financiamento para as estruturas culturais enfraquecidas e a companhia de Alicia converte-se no Ballet Nacional de Cuba, que faz uma longa tournée pela América Latina como embaixada cultural do governo revolucionário. Nos campos e nas ruas, Alicia-professora procura jovens que queiram dançar, aspiração que não pode ser negada a nenhuma criança. A sua linguagem coreográfica desponta. É esta a escola da dança cubana – um ballet quente, diferente de todos os outros e a todos acessível, submerso no pensamento de Cuba e na sua forma de sentir. Uma combinação do virtuosismo conciso e formalista com a doce sensualidade que os cubanos têm no sangue. Um estilo expressivo, latino e voluptuoso, prontamente reconhecível.
Alicia-orgulho apresenta o Ballet Nacional de Cuba mais de 60 países, recebe prémios e distinções e multiplica as criações coreográficas do seu ballet cubano, embora o seu compromisso político a impeça de actuar nos Estados Unidos até 1971. Com 50 anos, quase cega, segue a dançar nas mais prestigiadas companhias do mundo. Em Janeiro de 1990, no cinquentenário do American Ballet Theatre, dança parte do Lago dos Cisnes no Metropolitan Opera House. Em 1995, na apresentação de Farfalla, paira para longe do palco a bailarina que por mais tempo o sobrevoou. Alicia-brilhante, símbolo maior da cultura cubana, linda no seu turbante, batom vermelho, enormes óculos de sol, ensina e coreografa até ao fim dos dias, treinando gerações de bailarinos, criando estrelas no lugar de cultura, bravura e heroísmo que, como à dança, tanto amou. Lugar onde um dia, disse, plantou uma árvore, de bons frutos porque a terra é boa. É este o seu legado, não apenas para Cuba, mas, espero, para o mundo. E foi assim que aconteceu, Alicia-lenda venceu a morte.
Publicado no Jornal d’ A Voz do Operário, n.º 3072