SUSPIRIA | when you dance a dance of another, you make yourself in the image of its creator.

[Suspiria, Luca Guadagnino, E.U.A./ Itália]

Depois do melancólico Call Me By Your Name (2017), Luca Guadagnino surpreendeu os cinéfilos ao anunciar o remake do clássico de terror de Dario Argento, Suspiria. A acção decorre no ano de 1977 (ano de estreia do filme de Argento) na cidade de Berlim e nas profundezas – literalmente – da prestigiada Companhia de Dança Helena Markos, um espaço inteiramente ocupado por mulheres e gerido por um grupo sinistro de criaturas. A trama acompanha a ascensão meteórica de Susie Bannion (Dakota Johnson), uma bailarina americana sem treino formal que consegue uma audição com Madame Blanc (Tilda Swinton), uma das lendárias directoras da companhia. A chegada de Susie coincide com um momento agitado da escola, o desaparecimento da prima ballerina Patricia (Chloë Grace Moretz), que assim deixa vago o lugar da protagonista no próximo espectáculo da companhia. Madame Blanc rende-se ao talento de Susie e começa a prepara-la para esse lugar; mas a brutalidade da sua dança (saltos impossíveis, movimentos bruscos e contundentes, contorções grotescas) requer sacrifícios – no sentido literal e figurado. Na abertura do filme, uma Patricia muito perturbada revela ao seu terapeuta, Dr. Jozef Klemperer, o quotidiano sombrio da companhia e a verdadeira natureza das suas dirigentes: um grupo de bruxas no qual três mães (Escuridão, Lágrimas e Suspiros) lutam por posições de domínio…

A prestação de Dakota Johnson no linóleo tem sido muito elogiada e comparada até com a de Natalie Portman em Black Swan.

Dividido em seis actos e um epílogo, Suspiria de Guadagnino representa uma reinterpretação extensa do filme de Argento, com um tempo e espaço concretos, uma subtrama política e o movimento contemporâneo no lugar do ballet clássico. Mais do que isso, o argumento de David Kajganich é embebido de uma estética extravagante e estilizada: a palete fotográfica hibernal de Sayombhu Mukdeeprom (que também filmou Call Me By Your Name) em lugar do festim sangrento de Argento, o design de produção brutalista de Inbal Weinberg (inspirado no ambiente da Alemanha da época), o guarda-roupa de Giulia Piersanti ou a arrepiante banda-sonora de Goblin (presente também no filme original) e a belíssima partitura de Thom Yorke. No elenco, a heroína romântico-masoquista de Fifty Shades of Grey, Dakota Johnson, empresta a Susie um pouco da aura da sua anterior personagem, apresentando-se num misto de inexpressão e sensualidade reprimida que ao longo da trama se vão metamorfoseando. Não há nada de explicitamente sexual em Suspiria à excepção da presença de Johnson, que parece suficiente para cunhar a carga erótica do filme. Mesmo a sua prestação no linóleo tem sido muito elogiada e comparada até com a de Natalie Portman em Black Swan (ambas as actrizes foram treinadas por Mary Helen Bowers) – a comparação é excessiva, sem desmérito para o esforço de Johnson. Mas a estrela mais brilhante é naturalmente Tilda Swinton no papel de Madame Blanc – uma Pina Bausch fantasmagórica – e ainda, irreconhecível, nos papéis de Helena Markos e do psicanalista Jozef Klemperer. Os movimentos e semblante perturbador de Swinton quase dispensam as palavras.

Importa ainda destacar o trabalho do coreógrafo belgo-francês Damien Jalet. Guadagnino terá comentado que pretendia que a dança fosse um elemento central, a “linguagem secreta das bruxas” e a sua forma de expressão de poder. Esta indicação foi a grande inspiração de Jalet para as sequências assombradas do grupo de bailarinas, bem como o trabalho de Martha Graham, Mary Wigman (uma das suas obras mais famosas chama-se, precisamente Witch Dance) e Pina Bausch, de resto as figuras que inspiraram a composição da personagem de Madame Blanc. Há pelo menos três momentos de dança verdadeiramente sinistros: No início, a audição de Susie, na qual os seus movimentos violentos parecem conduzir a agonia de uma bailarina que se contorce na sala ao lado; no final – um ritual de bruxaria e transmutação orientado por movimentos crus e inorgânicos de bailarinas despidas; e a peça Volk, a composição que a companhia ensaia e Susie protagoniza. Volk é baseada em Les Médusées, uma criação de Jalet de 2013 cujos temas se sobrepõem naturalmente aos de Suspiria: As três Górgonas vs. as Três Mães. A coreografia original para três mulheres foi modificada para 12 bailarinas e uma solista, apostando em movimentos tecnicamente simples, mas rígidos e robustos. A estrutura da peça é construída a partir de um pentagrama traçado no chão por uma fita prateada a demarcar os movimentos viscerais das bailarinas, que parecem tentar escapar a um ritual sangrento de magia negra – ideia reforçada pela iluminação intermitente e pelos corpos cobertos apenas por cordas vermelhas. A performance de Volk é o fio condutor da narrativa – a tarefa que possibilita a agregação definitiva da pupila ao covil de feiticeiras – e o grande momento do filme.

Enquanto objecto cinematográfico, parece mais adequado encarar este Suspiria como um exercício de actualização de um objecto de culto, inevitavelmente impregnado de dispositivos modernos e de um virtuosismo técnico e estilístico que é assinatura do seu realizador. O propósito do terror e do choque, no entanto, dissolve-se num argumento demasiado confuso, que não explora as suas potencialidades (desperdiçando, por exemplo, a ambiguidade da relação professora/pupila entre Madame Blanc e Susie) e acaba por fragmentar a já demasiada informação sensorial. O ritual e o cenário grotescos da conclusão do filme são de tal forma exagerados que arrasam a mais elevada capacidade de suspension of disbelief – talvez funcione para aficionados do género. Felizmente, a dança, interpretada e evocada, materializa o melhor que Suspiria tem para oferecer.

★★★★★★

[originalmente publicado em Les Corps Dansants]