caminhamos sozinhos na multidão digital.

A minha solidão
Não é uma invenção
Para enfeitar noites estreladas…
… Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
E ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

(José Gomes Ferreira)

Na 125.ª Convenção Anual (2017) a APA divulgou os resultados de uma investigação que sugere que a solidão aumenta em 50% o risco da morte prematura. Em 2018 o Reino Unido criou o Ministério da Solidão, gabinete que pretende combater as suas consequências em mais de 9 milhões de britânicos. Ainda em 2018 nasceu The Loneliness Project, um prédio habitacional online onde moram testemunhos de solitários de todo o mundo. Por cá, o Obsolidão (Observatório da Solidão do Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo) não tem dúvidas de que estamos perante um problema grave que deveria ser alvo de políticas concretas.

Um construto tradicionalmente associado à idade avançada, aos meios rurais, ao isolamento social e a níveis educacionais mais baixos transformou-se no século XXI numa realidade global, jovem, urbana, instruída e hiperconectada. Atingindo todas as faixas etárias e classes sociais, a solidão é hoje uma reconhecida questão de saúde pública de dimensão comparável à obesidade, com impacto não apenas na saúde psicológica (ansiedade, depressão, níveis de stress), mas também na saúde física (problemas cardiovasculares, distúrbios de sono, deficiências imunitárias). Tem sido identificada, em vários meios, como a grande epidemia contemporânea.

Do ponto de vista da Psicologia, é um diagnóstico desafiante. Embora as medidas de auto-relato sejam subjectivas e todos experienciemos momentos de solidão em algum momento da vida (que, se curtos e balizados no tempo, poderão ser altamente construtivos), existem aspectos objectivos – estado civil, estrutura familiar, dimensão da rede social – que poderão ajudar a inferir do seu grau, enquanto outros poderão sugerir informações contraditórias. Tal é o caso da utilização de múltiplas redes sociais, do número de interacções online ou do tempo despendido online. De facto, o paradoxo da Internet é uma das mais salientes mutações das sociedades modernas. As primeiras investigações sobre os efeitos da Internet perceberam a relação inversa entre o aumento das relações desenvolvidas e mantidas online e a diminuição dos contactos presenciais. A investigação sugere que este efeito perdura e atinge sobretudo os mais jovens, sendo expectável que se alastre e intensifique. Paradoxalmente, o autor do número de Dunbar (famosa teoria que postula a capacidade humana de manter um círculo social com um máximo de 150 relações) sugere que as possibilidades relacionais no ciberespaço não alteram realmente o número de conexões seguras e significativas, embora se observe um aumento evidente de relações superficiais (i.e., o número de relações reais dos utilizadores de redes sociais é, na verdade, igual ao dos indivíduos ausentes dessas redes). Solidão e isolamento social estão longe de ser sinónimos e existe um desacordo evidente entre a quantidade e qualidade nas relações.

Seja como for, no mundo hiperconectado em que vivemos, a possibilidade de comunicação e partilha é constante e instantânea. A existência online não apenas tem ganho terreno ao contacto face-a-face, mas tem vindo a alterar a forma como comunicamos e nos expressamos, e consequentemente, as próprias necessidades relacionais – ou, pelo menos, o seu formato. Tirar conclusões sobre o impacto do mundo digital na solidão é por isso difícil: Serão os actuais níveis de solidão produto da utilização da tecnologia ou será o seu uso excessivo resultante do isolamento acompanhado em que vivemos? Podemos culpar a tecnologia por não saber o nome dos nossos vizinhos?

Embora a solidão seja parte da natureza humana, os estudos sobre a solidão têm uma história relativamente curta na investigação psicológica. Neste momento, o seu crescimento exponencial, a ampliação dos contextos em que ocorre e a amplitude alarmante dos seus efeitos justificam a necessidade de novas linhas de investigação, abrangentes e multidisciplinares, que possam averiguar as suas especificidades e preparar os profissionais para uma intervenção tão urgente quanto inevitável. O contributo da psicologia e dos psicólogos neste contexto é fundamental e deve por isso constituir uma prioridade.

Publicado na PSIS21 a 28-02-2019